Castelo de S. JorgeConsiderado o monumento mais emblemático da cidade de Lisboa, o Castelo de S. Jorge é um testemunho relevante de momentos ímpares da história de Lisboa e de Portugal.
Em 16 de Junho de 1910, meses antes da implantação da República, D. Manuel II, último Rei de Portugal, manda publicar o decreto de classificação do património nacional com estatuto de Monumento Nacional, em cuja lista se incluía o Castelo de S. Jorge.
É o culminar de um processo de enquadramento legal para a conservação do património monumental que se iniciara no século XVIII, no reinado de D. João V, com o famoso Alvará de 20 de Agosto de 1721 em que o Rei determinava que se inventariassem e conservassem “ os monumentos antigos que havia e se podia descobrir no Reino dos tempos em que nele dominaram os Fenícios, Gregos, Persas, Romanos, Godos e Arábios…”, marcando o início de uma outra maneira de encarar e interpretar os testemunhos materiais da História que permaneceram e sobreviveram, constituindo-se em valores de memória colectiva, símbolos da consciência de um passado feito de culturas diversas.
É, também, a substituição da Antiqualha, tão querida aos eruditos do Renascimento como André de Resende, Francisco de Holanda ou Damião de Góis, pelo Monumento, de Alexandre Herculano, da Real Associação dos Arquitectos e Arqueólogos Portugueses e dos inúmeros académicos do século XIX que contribuíram com o estudo, identificação e inventariação do imenso património nacional, enfatizando a necessidade de salvaguarda, conservação e reparação dos monumentos históricos superlativos para a memória nacional.
Esses valores de memória e antiguidade são atestados na singular relevância histórica e arqueológica compulsada nos arquivos e no terreno por Augusto Vieira da Silva em 1898, publicando a primeira monografia sobre o Castelo de S. Jorge, que nesse fim de século se escondia parcialmente sob inúmeras construções que ao longo dos tempos foram adaptando os seus espaços a novas funcionalidades. Tal situação não diminuiu porém o mérito do valor intrínseco do monumento cuja autenticidade e significado se mantém ainda, mesmo acumulando as adaptações que se impuseram ao longo dos séculos.
O seu todo autêntico de significados não é mais do que a memória colectiva modelada pelo passar do tempo, materializada num conjunto de testemunhos com uma existência dinâmica que só reforçam o sentimento de identidade vinculada a um passado comum de diversidade que produziu a sua forma actual.
Assim, a área classificada em 1910 integrou um conjunto de património notável constituído pelo castelo e as muralhas, por alguns edifícios que outrora faziam parte do antigo Paço Real da alcáçova, ocupados então pelo quartel, e por uma área designada hoje por Praça Nova que encerra vestígios de várias épocas, desconhecidos na altura, com destaque para o conjunto residencial da época Islâmica.
É nessa zona a nascente do castelo, a Praça Nova, onde hoje se situa o Núcleo Arqueológico, que se encontram os vestígios mais antigos de ocupação da área circunscrita pelo Monumento Nacional e que remontam ao séc. VII a.C., à Idade do Ferro, época em que provavelmente aí se localizava um povoado fortificado.
A escolha do local justificou-se pelas naturais condições de defesa e de vigilância, sobre o Tejo e as terras em redor a perder de vista, oferecidas pelas acentuadas escarpas que sustentam a colina a Norte e Oeste. Estas características também determinariam, mais tarde, o local escolhido para a construção do castelo.
Desse distante século VII a.C preservaram-se algumas estruturas habitacionais, às quais se sucedem outras dos séculos IV a.C e III a.C., visíveis no Núcleo Arqueológico. O espólio associado a estas primitivas ocupações, constituído por diversos objectos – panelas, potes, taças e ânforas – em cerâmica de engobe vermelho ou cerâmica cinzenta de paredes finas, oriundos do Próximo Oriente, ou cerâmicas áticas de verniz preto e figuras vermelhas, provenientes da Grécia, entre outros objectos cerâmicos de produção local, documentam a existência de contactos regulares com os Fenícios que as comercializavam por todo o Mediterrâneo e costa Atlântica através da sua rede de feitorias e colónias.
A ocupação romana do topo da colina do Castelo é ainda pouco conhecida. As fontes escritas documentam que, em 138 a.C., o general romano Decimus Junius Brutus ocupou a cidade e teria construído a sua primeira muralha rodeando e protegendo o seu núcleo urbano, segundo nos deu conta, cerca de cem anos mais tarde, o historiador grego Estrabão. Os testemunhos mais significativos são uma desproporcionada presença de vasilhame para transporte de produtos alimentares (ânforas de vinho, azeite e conservas piscícolas). Este espólio permite, contudo, documentar esse processo de construção social ocorrido durante a República Romana, onde se fez sentir de forma significativa a presença dos romanos «de fora» e das suas importações testemunhadas nos inúmeros exemplares de ânforas provenientes de Itália, da Grécia, ou da costa mediterrânica do Sul de Espanha, alguns deles identificados pelos produtores como é o caso da asa de ânfora, importada de Brindisi – Itália, marcada por Heraios em caracteres gregos HPAIOC. Também a loiça de mesa em cerâmica campaniense de verniz negro trazida da Campânia – Itália atesta essa intensa ligação comercial. Algumas moedas, cunhadas em Roma no período Republicano completam o espólio importado contribuindo para confirmar a sua datação. Porém, são desconhecidas estruturas que permitam definir com maior exactidão o tipo de ocupação do topo da colina do Castelo, evidenciando, os poucos vestígios conhecidos, as características de uma área monumental, talvez de carácter religioso, no período Imperial.
Do período tardo-romano e durante as monarquias Sueva e Visigoda, os testemunhos são esparsos ou ainda desconhecidos. Lisboa enquanto cidade no limite geográfico e cultural das grandes civilizações mediterrânicas que lhe moldaram o percurso contínuo de urbe atlântica orientada para o comércio conheceu, certamente, alguma regressão urbana e económica durante os séculos VI a VIII, situação de resto comum a todas as cidades grandes ou médias do antigo império romano.
Em 714, quando Aidulfo, nobre da família do rei visigodo Vitiza, senhor de Aschbouna negoceia a entrega da cidade com Abd al-Azîz, filho de Mûsâ, comandante (al-Walîd) árabe da Hispania, um novo ciclo se inicia. O tratado de rendição assegurava a liberdade das «gentes do livro», ou seja Judeus e Cristãos, mediante o pagamento anual de um tributo e o compromisso de lealdade e vassalagem à soberania Islâmica.
Porém destes primeiros três séculos de Al-Uxbuna pouco se sabe, para além, das esparsas referências em documentos que relatam situações de conflito com cristãos ou dão notícia de revoltas no seio da aparente hegemonia islâmica, entre árabes, berberes e muladis.
De 798 a 808, a cidade encontra-se sob o poder de D. Afonso II, Rei das Astúrias, que a conquista no seguimento das campanhas de reconquista de território aos muçulmanos que promove a partir do Norte da Península. Em 844 há notícia do ataque normando que sitia a cidade durante 13 dias. Em 886, é novamente notícia devido a revolta do governador, obrigando à intervenção do Emir de Córdova que envia uma esquadra para pôr fim à insurreição e prender o governador. Em 953, o rei Ordonho III de Leão toma Al-Uxbuna derrubando parte das muralhas da cidade. Em 966, um novo ataque normando é repelido com a ajuda do exército enviado pelo Califa de Córdova al-Hakan II.
Nas primeiras décadas do século XI a hegemonia do Califado não resiste às forças desagregadoras dos pequenos poderes regionais que se fortalecem na exacta medida que aquele se fragiliza e à presença cada vez mais significativa das monarquias cristãs do Norte que forçam amiúde as fronteiras a Sul com fossados cada vez mais ousados. Em 1031 todo o território peninsular sob o domínio islâmico fragmentou-se em diversos principados entregues a si próprios, os reinos das Taifas (facções).
Neste mundo conturbado de conflitos entre árabes, berberes e cristãos, assolado ainda por expedições normandas que saqueavam as cidades costeiras, reforçaram-se as defesas das cidades através de um complexo sistema de fortificações - muralhas, castelos, atalaias.
No Garb-al-Andalus Lisboa era a mais importante cidade da costa atlântica ocidental possuindo um vasto e rico interland (num eixo que abrangia desde Sintra a Santarém) que abastecia de produtos as rotas comerciais que a bordejavam, herança recebida desde época fenícia, mantida por romanos e continuada agora por muçulmanos. Al-Razî, Al-‘Udrî, Al-Bakrî ou Idrîsî, autores árabes dos séculos X a XII que nos legaram um vislumbre sobre o território do ocidente peninsular islâmico, atestam essa abundância económica da cidade de origens perdidas no tempo. Porém, não obstante ser a cidade maior e mais próspera do território que hoje é Portugal, gozando até de uma certa autonomia, nunca revelou um papel de liderança enquanto centro de decisão político ou administrativo, ou mesmo militar e económico.
À semelhança de outras cidades do Al-Andalus, Lisboa vivia em torno da medina (madînat), o núcleo urbano principal com os seus bairros organizados por ofícios, etnias e credos (as judiarias e moçarabias), com o souk (o mercado), as mesquitas e provavelmente as igrejas, protegida por uma muralha que em caso de necessidade acolhia ainda as populações dos arrabaldes que se localizavam na actual Alfama e em parte da zona da Baixa, no sopé da colina do Castelo.
As elites políticas, militares e administrativas que comandavam os destinos da urbe viviam na zona mais inacessível da medina, a alcáçova (al-qasaba), a cidadela fortificada onde se localizava o palácio do alcaide, o castelo e as zonas residenciais para as elites do governo. As suas muralhas com as portas que lhe davam acesso são ainda hoje visíveis na Praça Nova e no Largo do Chão da Feira, pois devido à topografia do terreno o perímetro da alcáçova manteve-se inalterado ao longo destes séculos, não obstante alguns dos seus troços se encontrarem escondidos pelas construções existentes actualmente.
Naquele contexto de instabilidade de meados do século XI a zona Norte da alcáçova foi alvo de uma reorganização urbanística que levou à construção do castelo e das casas e arruamentos da Praça Nova, que se mantiveram preservadas em parte e hoje se encontram musealizadas.
É provável que anteriormente já existisse no local uma fortificação, porém, as sondagens arqueológicas numa zona do interior do castelo e as escavações arqueológicas realizadas na Praça Nova vieram documentar que toda aquela área sofreu uma intervenção global consubstanciada em demolições e terraplanagens para a construção da actual fortificação e de uma zona residencial, situação que poderia relacionar-se com uma necessidade de reforço do sistema defensivo da alcáçova face à instabilidade dos tempos.
À semelhança do que acontecia noutras cidades islâmicas do al-Andalus, o local escolhido para a construção do castelo da alcáçova obedecia a determinadas características topográficas, como a dificuldade de acesso e a existência de um maciço rochoso escarpado de forma a potenciar a inexpugnabilidade da fortificação dissuadindo assim um pretenso ataque. Com uma planta quadrangular com cerca de 50 m de largura dividido por um muro com uma torre adossada, o castelo preserva ainda as onze torres, uma das quais a meia encosta, designada por torre da couraça e que permitia o acesso a um ponto de água em caso de cerco prolongado.
Ao contrário dos castelos da Europa cristã, este tipo de fortificações no sul islâmico urbano albergava exclusivamente a guarnição militar que assegurava a protecção da cidade e em caso de cerco o comando militar, integrando o complexo sistema defensivo próprio das cidades islâmicas constituído pelas muralhas da medina e da alcáçova e pelas atalaias situadas em locais estratégicos em redor da cidade.
A área residencial posta a descoberto no âmbito das escavações arqueológicas, caracteriza-se por um conjunto de estruturas habitacionais, entre as quais se destacam duas casas geminadas de dimensões generosas, respectivamente 160 m2 e 187 m2, enquadradas por três ruas, encontrando-se na rua empedrada de acesso às casas o sistema de saneamento próprio das cidades islâmicas. As casas apresentam acabamentos de qualidade, particularmente nos salões onde as paredes ostentam estuques pintados e decorados com motivos geométricos e com o “cordão da felicidade” motivo típico da cultura islâmica. Também os pavimentos apresentam um acabamento cuidado de argamassa branca ou do tipo “almagre” (argamassa pintada a vermelho). Numa das casas também as paredes do pátio revelam vestígios de terem recebido um acabamento de estuque decorado com motivos geométricos.
Dos habitantes desta área residencial, nos longínquos séculos XI e XII, época dos Reinos das Taifas e do Império Almorávida, conhecem-se agora as casas, as ruas por onde circulavam e os objectos que nos permitem imaginar a sua vida quotidiana, os seus hábitos e gostos ou a sua atitude perante a morte, testemunhos resgatados pelos arqueólogos aos séculos de terra que os escondiam.
Em 1147, D. Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal, com a ajuda da Segunda Cruzada, conquista a cidade que capitula após cinco meses de cerco. Em 25 de Outubro desse ano, o novo poder instala-se no Castelo de S. Jorge. Os personagens mudam mas permanecem as funções e a nobreza dos residentes que adoptam os espaços funcionais dos antecessores.
A antiga zona palatina serviu de aposentos aos novos senhores, o castelo permaneceu como local de comando militar, adoptando a orgânica funcional anterior, a área residencial, junto à antiga mesquita consagrada agora ao culto cristão, foi doada ao Bispo de Lisboa para aí construir o seu paço e fundou-se a freguesia de Santa Cruz da alcáçova onde se estabeleceram os nobres ligados ao poder.
Estabilizada a vida quotidiana na cidade, vários foram os edifícios da alcáçova que receberam obras de reparação ou adaptação. O Palácio dos Bispos, no actual sítio da Praça Nova, foi remodelado. O Paço Real foi alvo de obras no reinado de D. Afonso III (1248-1279), que deixa o seu brasão d’ armas na porta hoje designada do Espírito Santo. As obras na área palatina prosseguiram no reinado de D. Dinis (1279-1325) que segundo os documentos dotou o Paço de melhores condições e ordenou que todos os dias se rezassem as horas canónicas na capela real de S. Miguel, da qual ainda hoje são visíveis os vestígios da abside. As obras realizadas neste período devem ter sido consideráveis para que no século XVI, Damião de Góis, Guarda-mór da Torre do Tombo e cronista real, afirmasse que os paços haviam sido feitos por D. Dinis. O castelo e as muralhas certamente que também foram reparados aqui e ali.
De meados do séc. XIII até ao início do séc. XVI, o Castelo de S. Jorge conheceu o seu período áureo. Nos edifícios onde hoje se encontra o Núcleo Museológico, o Café do Castelo e o Restaurante Casa do Leão, localizava-se o antigo palácio do alcaide mouro que se converteu em residência dos Reis de Portugal quando estavam em Lisboa. Transformado em Paço Real, ampliaram-se e adaptaram-se os espaços antigos, construíram-se outros novos, instalou-se o Rei, a Corte e o arquivo régio numa das torres do castelo, receberam-se personagens ilustres nacionais e estrangeiras, realizaram-se festas e aclamaram-se Reis.
Era aqui a residência do Rei e da Corte, do Alcaide que zelava pela defesa da cidade e do Bispo que orientava a vida espiritual. Tanto os espaços palatinos, como o castelo e as muralhas ou o Paço dos Bispos recebem obras nos reinados de D. Afonso IV (1325- 1357), de D. Fernando em 1373-1375 quando promove a campanha da nova muralha da cidade que ficou com o seu nome (muralha Fernandina) e D. João I (1385 - 1433) que mandou aterrar o fosso do castelo entre outras obras de reparação, ou dos Bispos que sucessivamente foram introduzindo adaptações nos seus paços registadas pela arqueologia.
Ao Paço Real da alcáçova, com as suas inúmeras dependências, ao castelo, agora devotado a S. Jorge, santo padroeiro dos cavaleiros e das Cruzadas, por ordem do rei D. João I, e ao Paço do Bispo, juntaram-se, segundo os documentos, as Casas da Rainha, com as Cavalariças e o Hospital, casas de nobres da Corte, uma ou duas albergarias, a igreja e o cemitério, as capelas e alguns serviços da Administração, a Chancelaria, os Contos do Rei e o Arquivo Régio.
No século XV e XVI, na vetusta alcáçova, manteve-se no castelo a Torre do Tombo, que se alargou por algumas alas do antigo Paço Real, os Paços da Rainha, as Confrarias e as casas apalaçadas de funcionários nobres ligados à família Real. Foi construída a Ermida do Espírito Santo, o antigo Paço dos Bispos cedeu lugar ao Palácio dos Condes de Santiago, e criou-se o Recolhimento da N.ª Sr.ª da Encarnação, para as meninas órfãs da nobreza.
É o auge da vida da Corte na alcáçova e em particular no Paço Real: a aclamação do rei D. Duarte em 1433, o sarau em honra do casamento de D. Leonor com o Imperador da Alemanha Frederico III em 1451, a aclamação de João II em 1481, a reunião de Cortes de 1498, a recepção do rei D. Manuel a Vasco da Gama regressado da Índia em 1499, o Natal de D. Manuel I em 1501, o nascimento do príncipe D. João, futuro rei D. João III, ou a apresentação da primeira peça de Gil Vicente, ambos em 1502, entre outros acontecimentos que marcaram certamente o dia-a-dia dos residentes neste espaço privilegiado de Lisboa.
Nas casas dos habitantes dessa época, encontravam-se cerâmicas vidradas, faianças azuis e brancas de produção local, cerâmicas douradas de Valência, em maior quantidade e diversidade, majólicas de Itália e uma profusão de recipientes de cerâmica comum característicos da época, como as infusas para líquidos, os almofarizes, os copos de medida, as candeias ou os camareiros, objectos que integram, hoje, o acervo do Núcleo Museológico. Os palácios ostentavam revestimentos de azulejos policromos e pavimentos de tijoleiras e losetas em técnica de aresta, como os que se apresentam na colecção visitável, ou pavimentos idênticos ao exemplar in situ do Palácio dos Condes de Santiago, de finais do século XV ou inícios do século XVI, de argamassa vermelha com quadrados entrecruzados decorado nas pontas com losetas monocromas verdes e brancas e azulejos de arestas com motivo de estrela em azul, amarelo e negro, ainda preservado e visível.
O século XVI dita uma renovação mais substantiva da ocupação do Castelo de S. Jorge, marcada pela transferência do Rei e da Corte para o Paço da Ribeira situado no Terreiro de Paço e pelo regresso da vida militar que sobreveio com a integração de Portugal na Coroa de Espanha em 1580. Porém, D. Sebastião (1557-1578) mandou ainda proceder a obras no antigo Paço Real e em 1571 é no Paço Real da alcáçova que recebe o Cardeal Legado do Papa Pio V numa recepção primorosamente documentada por João Baptista Venturino, secretário do Cardeal, numa epístola onde este descreve detalhadamente o velho Paço Real.
Os sessenta anos de integração do reino de Portugal na coroa de Espanha, entre 1580 e 1640, introduziram alterações significativas no Castelo de S. Jorge que reassumiu um papel de comando político e defesa. Parte da área ocupada pelo Paço Real da alcáçova foi transformada em quartel para aí instalar o Governador e a sua guarnição militar, sofrendo obras de adaptação e modernização defensiva. Em 2 de Dezembro de 1640, quando o Castelo de S. Jorge é entregue a D. Álvaro de Abranches, a guarnição do castelo contava com 500 soldados espanhóis.
Após a Restauração em 1640 permaneceu a matriz militar, manteve-se o quartel e a prisão e o novo Alcaide–Mor instalou-se no actual Palácio do Governador, que integrava o antigo Paço do Rei. Numa das torres do castelo e nas alas do antigo Paço continuou a funcionar a Torre do Tombo. Situado no sítio onde hoje se encontra a Bilheteira do Castelo de S. Jorge, o hospital, dirigido pelos Irmãos Hospitaleiros de São João de Deus, após o interregno de uns anos, voltou a receber militares doentes. As casas apalaçadas existentes continuaram ocupadas, como o Palácio dos Condes de Santiago ou o Recolhimento de N.ª Sr.ª da Encarnação. Construíram-se novas Ermidas e criaram-se mais Confrarias.
Do dia-a-dia dos habitantes dos palácios e do hospital conhecem-se, hoje, vários objectos utilitários que deixam perceber as mudanças lentamente enraizadas: as louças são personalizadas com os brasões dos proprietários e as cerâmicas vidradas e as faianças substituem a cerâmica comum. Nas casas mais abastadas não faltavam as porcelanas da China. Os vidros são mais abundantes, bem como os especieiros, objecto emblemático da alteração dos hábitos alimentares.
No século XVIII e XIX o Castelo de S. Jorge recebe as alterações mais profundas. Com o terramoto de 1755, as muralhas, o castelo, o antigo Paço Real, bem como a maior parte dos palácios, ermidas, igreja e outras construções existentes ficaram em ruínas. Sobre os escombros dos antigos edifícios, foram lentamente construídos outros que esconderam as ruínas dos anteriores. Só a igreja de Santa Cruz foi reconstruída. O castelo e parte dos vestígios do antigo Paço Real da alcáçova foram redescobertos já no século XX, após as demolições das construções pós-terramoto que os encobriam.
Os objectos fragmentados ou deformados pelo calor dos incêndios que deflagraram a seguir ao terramoto, encontrados nos escombros do Palácio dos Condes de Santiago e no Hospital dos Soldados, postos a descoberto durante as investigações arqueológicas, testemunham bem os estragos causados nesta zona da cidade. Outros foram recolhidos nos dias seguintes, como os documentos e livros arquivados na Torre do Tombo que se espalharam por toda a área conforme relata o Guarda-Mór da época numa carta ao Rei em que solicita autorização para construir na Praça d’Armas umas barracas para acomodar os livros e documentos antigos dispersos pelo chão.
Em 1780, no contexto dos problemas sociais decorrentes do terramoto, D. Maria I manda instalar nos edifícios antigos do Paço Real e em parte das edificações dos quartéis, a Casa Pia de Lisboa, fundada para receber crianças pobres, órfãs e abandonadas. Sob a responsabilidade do arquitecto Manuel Caetano de Sousa foram efectuadas obras de adaptação das antigas edificações, abertas cisternas e expropriados os terrenos de pão e olival junto à torre de S. Lourenço para abastecimento dos internados que ali permaneceram até 1807. Foram também avultadas as obras do General Eusébio Furtado, governador da praça militar do Castelo de S. Jorge, realizadas de 1841 a 1846.
Desde então até às primeiras décadas do século XX foram-se adaptando os espaços ao sabor das necessidades da vida militar, tanto nos edifícios do antigo Paço Real como noutros que foram surgindo no Castelo de S. Jorge e que paulatinamente foram escondendo os vestígios das edificações palatinas antigas.
É no decorrer do século XX que se redescobre o castelo, os vestígios do antigo Paço Real, a alcáçova islâmica e as vivências de outrora. As intervenções de 1938-40 promovidas pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, conferiram-lhe a imponência actual, resgatada no meio das demolições então levadas a cabo, atestando materialmente aqui e ali fragmentos das construções do passado documentadas amiúde nas fontes escritas. As outras que se seguiram, em particular as que se iniciaram na última década do século XX, contribuíram de forma singular para avivar a memória e lembrar a antiguidade da ocupação no topo da colina, restituindo à História páginas que estavam em branco e, acima de tudo, confirmando o inestimável valor histórico que fundamentou a classificação do Castelo de S. Jorge como Monumento Nacional no início do século XX.
Neste percurso de muitos séculos o Castelo de S. Jorge é ele próprio um testemunho único dessa dinâmica tão própria da arquitectura que atravessa os séculos reinventando-se e adaptando-se na continuidade e diversidade ao sabor da vontade humana que nas suas obstinações constrói e desconstrói, e, sem se dar conta, escreve e apaga páginas da História. É nesta complexidade de registos materiais que foram ficando dispersos e isolados ao longo dos tempos que também se faz a imagem do Monumento Nacional sem que isso determine uma desvalorização do seu significado histórico.
Neste seu devir histórico o Castelo de S. Jorge – Monumento Nacional é indissociável da sua envolvente, a actual freguesia do Castelo, com a qual se confunde no tempo e no espaço, constituindo uma unidade urbana especial no contexto da cidade de Lisboa desde meados do século XI, expressa por uma identidade própria feita de histórias cruzadas e por um urbanismo que se adaptou com os tempos mas que viveu, e vive, confinado às muralhas que coroam o recorte do relevo do topo da colina.
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